Quando Michel Pessanha para e conta sua história, todos deveriam ouvir. A poliomielite, também conhecida como pólio ou paralisia infantil, apareceu ainda na infância e causou sequelas em sua perna direita, mas a condição não o fez desistir. Em 2013, ele soube como o remo mudou a vida de Thayane Tavares, sobrevivente da tragédia da Escola Tasso da Silveira, em Realengo, que ficou paraplégica. Ele anotou o nome do técnico Franquilim Oliveira, responsável por treinar a menina, e foi bater na porta do Flamengo para pedir uma chance.
Eram dois ônibus, um trem e a paixão pelo esporte na bagagem. Michel saía todos os dias de casa ainda de madrugada, fazia o longo caminho de Duque de Caxias até a Gávea e entrava na água para treinar. Depois, ele voltava para iniciar o segundo turno de seu dia, trabalhando como mecânico. E assim foi até 2015, quando resolveu se dedicar apenas à modalidade.
Diversas medalhas, viagens, Mundiais e uma Olimpíada depois, Michel virou referência no remo paralímpico e não pensa em parar. Focado nos próximos desafios, ele fala sobre o esporte e o Flamengo com amor na voz, mostrando a importância dos dois em sua vida. Com o apoio da mulher e a admiração do filho, o remador vence uma batalha por dia sem perder a alegria.
Na série ‘De Olho no Pódio’, o site oficial do Rubro-Negro conta as histórias de alguns dos principais atletas do clube e do Brasil, passando pela vida pessoal, carreira e, claro, o Mais Querido. Conheça um pouco mais daqueles que fazem os esportes olímpicos rubro-negros e brasileiros mais fortes.
Início no remo
Comecei no esporte porque pesava 96kg. Eu era mecânico e tinha uma certa dificuldade de caminhar, sentia muita falta de ar. Então pensei que estava ficando muito pesado, tinha medo de não conseguir acompanhar meu filho e cheguei à conclusão de que precisava mudar aquilo. Iniciei na musculação e depois fui treinar levantamento de peso.
Então vi uma chamada na televisão sobre esportes olímpicos e o remo, que estava começando a trabalhar com paralímpico com a Thayane Tavares. Aí peguei o endereço e vim bater aqui no Flamengo. Foi o Franquilim que começou a fazer esse projeto com ela, então já anotei o nome dele para procurá-lo direto. Cheguei aqui na porta e pedi para falar com ele. Na época eu pesava 87kg e cheguei todo “marombeiro”. Ele disse que iria conversar com a diretoria do clube e daria a resposta em um mês. “Um mês é muita coisa”, pensei. Ligava para o Frank antes perguntando se já tinha a resposta, isso em 2013. Ele me pedia para aguardar um pouco e eu dizia que queria praticar, foi assim que resolvemos começar os treinos. Inicialmente falaram dois treinos por semana, mas eu disse que queria ir todos os dias.
O Fraquilim disse que não, seria pesado no início, pois eu precisava conciliar a mecânica de 14h às 21h, dormir um pouco e chegar no remo às 4h. Assim fiquei aqui desde 2013.
O começo foi difícil, pois eu achava que, por estar malhando, era forte. Então queria ir com muita intensidade e o Frank ia me dizendo para diminuir. Ficava pensando que ele queria ir devagar demais, mas eu queria mais. O dia que viu que estava muito acelerado, ele me colocou na raia e disse para dar um tiro de 1.000m. Achei ótimo, mas quando chegou em 200 e poucos metros, já estava ofegante. Decidi que era melhor prestar atenção e seguir o que o Franquilim estava dizendo.
Dificuldades do início
Quando comecei, ainda vinha de ônibus e trem. Chegava cansado e cheio de dor. O Frank perguntava como eu estava e sempre dizia que bem, disposto a fazer o que era pedido. Por dentro queria parar. Chegava em casa e dizia para a minha esposa que não sabia até quando aguentaria, pois era muito puxado. A deficiência te dá um direito, mas se a população não tiver consciência é difícil. Eu nunca peço, mas via no trem, por exemplo, as pessoas no assento de prioridade abaixando a cabeça e fingindo que estavam dormindo. Então ia de Caxias até São Cristóvão em pé. Sabia que ia me prejudicar no treino, mas continuava ali me esforçando.
Depois ia para o meu trabalho e meu patrão perguntava como eu aguentava. Acho que era mais aquela força, aquela vontade de dizer que eu ia conseguir. Dentro do remo já escutei pessoas dizendo que eu era uma perda de tempo, que não chegaria a lugar nenhum. Cheguei na Seleção com seis meses no esporte. Não sabia nadar naquele tempo e tinha que praticar a modalidade na água. Pensava como faria para ainda incluir a natação na rotina. Mas dei um jeito e deu tudo certo.
Hoje me sinto bem. Olho para trás e penso que tudo é um plano de Deus, eu venci. Mas não tenho aquilo de pensar que agora cheguei no topo e sou o melhor. Acredito que ainda tenho muito a evoluir, tanto que estou sempre me cobrando e respeitando meus colegas de trabalho. Falo que você pode estar lá em cima, mas não é melhor do que ninguém. Me preocupo com isso. Antigamente vinham falar comigo dizendo “você sabe quem você é? É o Michel Pessanha, atleta do remo”. E eu digo que sou o mesmo que mora em Caxias, conhece as mesmas pessoas e sou remador. Essa consciência é o diferencial.
Amor pelo esporte
Hoje tenho a oportunidade de conhecer várias modalidades, mas o remo te deixa apaixonado desde o primeiro contato. Não tem como. Conheço atletas que pensam no desempenho comparado ao que estão ganhando financeiramente. Para mim isso é consequência. Faço remo por amor ao esporte e pela questão de olhar onde eu estou. Estou representando o Flamengo. Agora vou para a Seleção Brasileira, mas sou atleta do Flamengo.
Relação com o Flamengo
Não me vejo em outro clube. Sou cria do Flamengo e quero encerrar minha carreira aqui remando com essa camisa. Às vezes falo para os meus vizinhos que sou remador daqui e, embora eles nem saibam o que é o remo, isso me deixa muito orgulhoso.
Momento mais marcante no Flamengo
Quando entrei no clube, tinha uma equipe que trabalhava aqui, dando todo suporte aos atletas. Então ter todas essas pessoas me ajudando foi especial. Quando encontrei aquele apoio aqui, todos juntos pelo meu sonho… sempre pensei que vou trabalhar para fazer valer a pena o investimento deles, que acreditam no meu potencial.
Relação com o técnico Franquilim Oliveira
Me dedicava muito também pelo Franquilim. Ele foi o que mais vibrou nos treinos, dando muito incentivo, dizendo que eu conseguia. Nem meu pai acreditava tanto no meu potencial. Lembro que na Copa do Mundo de 2014 ele correu a raia toda gritando meu nome. Eu estava dentro do barco ouvindo aquela voz e lembro que no dia eu disse “meu Deus, se eu não pegar essa medalha por mim, será por esse cara”. Você vê o esforço, toda vibração. Até hoje, quando tenho um bom resultado, vejo ele chorando e fico sem palavras. Isso me mantém motivado.
Tem pessoas que perguntam o que me mantém esse tempo todo no alto rendimento. Eu digo que são essas pessoas que torcem, que lutam sempre, acreditam no meu trabalho. Isso me mantém feliz e lutando para conquistar os meus objetivos e os deles.
Quando cogitam outro treinador, eu já nego logo. Às vezes estou treinando e sinto que já cheguei no meu limite. Aí ele começa a gritar “bora, Michel. Você consegue!” e parece que vem mais uma energia. Depois eu agradeço muito, pois parece que faltava aquilo. Se outra pessoa me chama, fico irritado pois atrapalha. Mas quando é ele não. Não dá pra entender, mas está dando certo (risos).
Rotina diária
No dia a dia é bem puxado.Ainda acordo às 4h da manhã, tomo meu café e venho para o clube, chegando por volta de 6h. Faço meu treino, que em média é de 16 a 20km na água, além da musculação, descanso um pouco e vou para a academia. Estou sempre tentando melhorar para ter um bom desempenho.
Dificuldades de ser um atleta de alto rendimento
Acredito que seja o reconhecimento. Conheço pessoas que falam que não trabalho, sou remador. Quando eu trabalhava com outra coisa, não tinha tanto desgaste físico quanto tenho agora no alto rendimento. Estou sempre buscando melhorar meus tempos e tenho uma cobrança grande. Às vezes quase chego no excesso de treinos por ir sempre no limite. Ouvir de alguém que é moleza te faz perceber que as pessoas não valorizam aqui no Brasil. Não só no esporte mas em todas as áreas, você sempre acha que o outro faz menos. Para mim, a maior dificuldade é essa. Meu sonho é ver o remo no topo, aquele que fundou isso aqui tudo. Hoje não está tão longe, pelo menos pelo que eu vejo aqui no Flamengo, que é uma potência. Dá pra ver o investimento, vários atletas de alto rendimento. É muito bom.
Principais competições e preparação visando Tóquio 2020
Esse ano é o Mundial, que é o que garante vaga para as Paralimpíadas. Estou vindo forte nos treinamentos diários, já viajo no começo de agosto para São Paulo para uma concentração para treinar também e vou para lá. Hoje não sei a colocação que o Brasil ficará, mas acho que conseguimos a vaga já agora. Depois é começar a trabalhar pensando nos Jogos.
Gosto de dividir as coisas. O treinador da Seleção diz que ainda tenho 2024, mas meu foco agora é classificar o barco, depois pensar em estar em Tóquio e então olhar para o próximo ciclo. Tem que ter uma meta. Vou trabalhar nisso e dar o meu melhor.
Esse ciclo ainda estou no Double Skiff, mas a partir do próximo já teremos o Single também. Então terei mais chance de medalhas.
Apoio da família
Tive uma estrutura familiar bagunçada da parte do meu pai, então pensava que, quando tivesse a minha família, seria diferente. Em momentos de dificuldades na vida, eu olhava meu filho com 5 anos e ele dizia “pai, você é meu orgulho”. Sabia que não podia dar mole. Hoje, aos 15 anos, boto ele no carro, levo para a academia, dou conselhos, ajudo. Às vezes falam que sou referência para fulano, mas se não for para o meu filho, perdi a minha batalha. Não quero ganhar o mundo e perder a minha casa. Quero ficar bem lá e, se possível, ajudar na evolução dos outros. Essa parceria com o meu garoto é muito legal.
Minha esposa foi minha maior incentivadora no remo, sempre dizendo que sou guerreiro e me pedindo para continuar. Olho isso tudo e, apesar da luta do dia a dia, só tenho a agradecer.
Ídolos no esporte
Não tenho uma pessoa específica. Admiro atletas de alto rendimento, como o Isaquias Queiroz, a Fabiana Beltrame. Olho e me espelho. Conheço o Daniel Dias, da natação paralímpica. O cara, mesmo com a deficiência, está sempre sorrindo e lutando. Fico no centro paralímpico e vejo atletas em situações piores do que a minha felizes. A felicidade não tem preço, é só você saber valorizar as coisas. Meus ídolos são essas pessoas.
Ficha técnica
Nome: Michel Gomes Pessanha Nascimento
Idade: 40 anos
Altura: 1,71cm
Naturalidade: Rio de Janeiro
Principais conquistas: Bronze na Copa do Mundo de 2014 na Holanda, campeão Mundial de remo indoor nos Estados Unidos e vencedor das batalhas diárias da vida
Fonte: Flamengo.com.br